5. Admirável Mundo Novo (Os Mundos que o Tecno-Mundo Abriu)
- Miguel João Ferreira
- 4 de dez. de 2017
- 9 min de leitura

Admirável Mundo Novo é, antes de mais, um clássico incontornável da literatura (muito mais do que ficção científica). Escrito em 1931 e publicado em 1932 pelo inglês Aldous Huxley, considerado um dos melhores 100 livros de sempre em língua inglesa, é uma obra fundamental de reflexão sobre a Sociedade e o Homem (numa era tecnologicamente avançada), mas onde o maior progresso tecnológico é acima de tudo uma artificial evolução biológica. A acção decorre em Londres, no ano 2540 (632 DF– “Depois de Ford” — não por acaso a escolha do gigante da Indústria automóvel, responsável pelo Modelo-T e pela Teoria de Administração Científica, juntamente com Taylor), e antecipa o desenvolvimento da tecnologia reprodutiva, da hipnopedia (aprendizagem induzida durante o sono), manipulação psicológica e condicionamento clássico, que se combinam para mudar profundamente a sociedade. As autoridades da Sociedade distópica e supostamente ideal do Admirável Mundo Novo dedicam-se à produção de classes de indivíduos (ou castas) divididos em categorias, segundo as suas capacidades biológicas: alfa, beta-mais, etc., até às indistintas ou sem classificação (o que corresponderia ao operário sem instrução numa sociedade industrial). Isto cria um fosso entre classes e indivíduos, uma fractura humana originada pelo tecnológico. Talvez uma evolução da Fractura Digital de que José Afonso Furtado nos fala no seu livro “Uma Cultura da Informação para o Universo Digital”, um dos temas mais importantes desta era da “Informação-binária” em que agora nos encontramos.
O facto é que, talvez ainda que disso nos não apercebamos, estamos a caminhar para este Admirável Mundo Novo que já vivemos em parte. A manipulação genética (e do genoma humano em particular), apesar de todos os debates, conflitos morais e problemas éticos, tem-se desenvolvido e, mesmo que longe do olhar público, tem estado a ser trabalhada, investigada e está já a acontecer para produção artificial de orgãos humanos (simples — pele, fígado, pancreas, bexiga, etc.) e impressão 3D. Diz-se que poderemos a curto-médio prazo escolher a cor dos olhos e do cabelo dos nossos descendentes. A inteligência artificial, como já temos referido por várias vezes ao longo destes artigos, está a bater-nos à porta e, ainda que o robot mais inteligente do mundo da actualidade, o “japonês” ASIMO da Aldeberan Robotics, só tenha ainda a inteligência de uma barata, os modelos seguintes evoluirão para a do rato e daí para a do cão e daí para a do macaco — altura em que, segundo o físico teórico nipónico-americano Michio Kaku (Doc. RTP 2077, 10 Segundos para o Futuro), deveremos preocupar-nos. Esta inteligência artificial que já vivemos (e que “amanhã” viverá connosco em nossa casa) corresponde, segundo os teóricos (de que se destaca o italiano Luciano Floridi) à 4ª Revolução Industrial.
Cabe-nos, precisamente neste artigo, a descoberta, em traços gerais, destas 4 grandes revoluções que mudaram a face do mundo em apenas 2 séculos e meio, como as quatro faces da lua, ou os 4 admiráveis mundos que o tecno-mundo abriu:
A 1ª Revolução Industrial deu-se em Inglaterra, no século XVIII, entre 1780 e 1830 e daí expandiu-se pelo resto da Europa. Chegou primeiro à Bélgica e a França e em meados do século XIX chegou aos Estados Unidos. Só no final desse século teve os seus efeitos na Alemanha, em Itália, e no Japão.
Caracteriza-se pela exploração do ferro, pelo desenvolvimento do tear, dedicado essencialmente à tecelagem do algodão (principal indústria da época, a par da siderurgia) e pelo uso do carvão como fonte primordial de energia (barcos, comboios — meios de transporte privilegiados da época —, ou qualquer outra máquina a vapor — de combustão a carvão).
Edmund Cartwright (1743-1823) patenteou o seu primeiro tear mecânico em 1785; seis anos depois, em 1801, em França, Joseph-Marie Jacquard (1752-1834), cansado da monotonia repetitiva do tear a que estava forçado, inventou, como vimos no artigo “3. Homo-Computatrum”, um sistema de automatização da tecelagem, abrindo as portas do que quase 200 anos depois viria a ser o PC (personal computer).
O trabalho é mecanizado, assalariado, e o seu cerne é o trabalhador por ofício. O trabalhador qualificado é pago à peça e Manchester torna-se o centro têxtil por excelência, desenvolvendo um processo de trabalho mecanizado que ficou conhecido por sistema manchesteriano. São os primeiros passos para o que no princípio do século XX seria desenvolvido numa nova organização do trabalho e nos princípios da Administração Científica de Taylor e Ford, já mencionados no primeiro parágrafo deste texto.
A máquina de fiar (tear mecânico) é, portanto, a máquina deste período, juntamente com o comboio e o barco a vapor; e a combustão a carvão a grande revolução energética.
A 2ª Revolução Industrial foi quase imediata: Começou por volta de 1870, mas só se tornou evidente nas 1ªas décadas do século XX. Foi um fenómeno essencialmente americano (EUA), pelo menos na sua génese. Os avanços deste período estão por trás de todo o desenvolvimento técnico, científico e da organização do trabalho que se verifica nos anos da 1ª e, principalmente, da 2ª Guerra Mundial:
A metalurgia-siderurgia (desenvolvida em grande força, por ex., no Estado da Pennsylvania), em particular a descoberta, desenvolvimento e exploração do aço (uma liga metalúrgica muito mais resistente), ganham ainda maior protagonismo e expressão. Este desenvolvimento da metalurgia é também impulsionado por razões pouco humanitárias: a corrida ao armamento e o desenvolvimento bélico das maiores potências durante a 1ª e a 2ª Guerras.
A indústria automobilística substitui o tear como centro de produção, dando lugar ao operário-metalúrgico como trabalhador tipo do período, com uma organização de trabalho fordista (Modelo T de Henry Ford, 1863–1947, linha de montagem e produção em série, padronizada) e taylorista (Frederick Taylor, 1856-1915, princípios de gestão/organização científica, divisão de tarefas, “cronometrização” do trabalho), desenvolvidas também pela Teoria Clássica da Administração de Jules Fayol (1841-1925), que estrutura a verticalização e hierarquização do trabalho e das organizações numa pirâmide com ponto crucial nas máximas chefias e delegação descendente de tarefas ao estilo do princípio militar-secreto do need to know basis.
O motor de combustão/explosão é a grande invenção deste período, sendo o petróleo a principal fonte de energia, desde a locomoção do veículo movido por si mesmo — e não por cavalos (daí automóvel), à iluminação (candeeiro a petróleo).
O operário, sem classificação, à imagem do modelo de castas da distopia de Huxley com que abrimos este artigo, torna-se numa extensão da mecânica, passando também ele a desenvolver um trabalho cada vez mais mecanizado, para o qual não precisa de pensar. Pensar, segundo estes novos padrões (e patrões), é a função de um especialista, o engenheiro, que planeia a mínima tarefa de cada trabalhador no universo da fábrica.
Assiste-se portanto à separação entre concepção e execução, quem pensa (o engenheiro) e quem faz (o operário).
A 3ª Revolução Industrial tem os seus primeiros desenvolvimentos durante a 2ª Grande Guerra, altura em que os computadores começam a sua evolução movidos pelo duelo dos códigos e jogos de encriptação (o Enigma alemão VS o Colossus dos Aliados, também já mencionados no capítulo 3. Homo-Computatrum). Torna-se porém verdadeiramente evidente, a meio da Guerra Fria, na década de 1970, e, uma vez mais, é desenvolvida muito por força de objectivos militares, no caso, do braço-de-ferro entre as super-potências Rússia-Estados Unidos.
É, acima de tudo, uma revolução tecnológica (que virá a colmatar na High-Tech ou tecnologia de ponta).
Na organização do trabalho, surge um modelo que apela a maior criatividade, e que aposta na qualificação da mão-de-obra e na flexibilização de horários. É o toyotismo (sistema de organização criado pelo japonês Taiichi Ohno, pós-2ªG.G., nas fábricas da Toyota, e difundido pela Europa nos anos 60), que passou a ser o sistema empresarial de referência:
a) Mão-de-obra multifuncional e qualificada, educada para conhecer todos os processos de produção e habilitada a actuar em várias áreas.
b) Sistema flexível de mecanização, contra o desperdício: discussão e produção apenas do necessário, com a produção ajustada à procura.
c) Controlo visual de todas as etapas de produção.
d) Implementação de monitorização de qualidade para obtenção de melhores produtos.
e) Aplicação do sistema Just in Time, produção de quantidades específicas com estabelecimento e respeito de prazos.
f) Implementação de pesquisas de mercado para corresponder às exigências dos clientes.
Elimina-se pela reengenharia grande parte da rede de chefias:
A verticalização do tempo fordista-taylorista-fayolista cede lugar à horizontalização. Com a horizontalização terceirizada e subcontratada, o problema dos altíssimos investimentos que a nova tecnologia pede é contornado e o controlo da economia agora trans-nacionalizada fica nas mãos de um punhado ainda menor de empresas. Sob a condução delas, a velha divisão imperial do planeta cede lugar à globalização. (Castells, 1999, vol.1).
A principal fonte de energia é a electricidade. A tecnologia característica deste período técnico é o circuito eléctrico, o transístor, a micro-electrónica. Desenvolve-se a informática, que se transforma com o tempo na Ciência do Futuro; surgem a máquina CNC (Controle Numérico Computadorizado), o robot e o sistema integrado à telemática (telecomunicações informatizadas).
Nasce a televisão, que passou a ser o melhor amigo das famílias e das pessoas sozinhas. Mas o computador é a máquina por excelência da terceira revolução industrial. É, como aponta Manuel Castells (A Sociedade em Rede), flexível, composto por hardware (a máquina propriamente dita) e software (programas).
O circuito e os programas integram-se sob o comando do chip, o que faz do computador, ao contrário da máquina comum, uma máquina reprogramável e mesmo auto-programável. Basta para isso que se troque o programa ou se monte uma programação adequadamente inter-cambiável. (Castells, 1999, vol.1).
Surgem novas regiões industriais de alta tecnologia, que unem centros produtores de tecnologia com indústrias de informação, associadas a grandes centros de pesquisa (como universidades), a que Castells (op. cit.) chama os tecnopólos, de que se destacam, nos EUA, Syllicon Valley (Califórnia) ou o MIT (Massachussets); ou, no Japão, a região de Tóquio-Yokohama, entre outros.
A 4ª Revolução Industrial terá começado no início do séc. XXI e é a que estamos precisamente a viver agora, assistindo aos seus primeiros passos. É a revolução da Inteligência Artificial e da Biotecnologia. É uma revolução que engloba as principais descobertas das outras que a precederam, passando-as para o próximo nível: É Química, Física, Tecnológica, de Engenharia Genética e Biologia Molecular. É a aproximação da realidade à ficção científica, do nosso mundo de agora ao Admirável Mundo Novo de Huxley, em que a manipulação genética, criação de orgãos e de um ser humano superior, com maiores capacidades intelectuais, ligação directa a um computador para download de informações e conhecimento, ao estilo do Matrix (1999, Wachowski Bros.), transmissão de pensamento, emoções, etc., é de facto possível. São coisas que estão ainda em laboratório, mas que atingiram já um tal estádio de evolução que, mesmo que longe dos olhares do público, os cientistas já não especulam se será possível, afirmam taxativamente que vai acontecer. A máquina humanizada (e cada vez mais Humana) e o Homem computadorizado (e cada vez mais capacitado ao nível da máquina), i.e., a simbiose Homem-Máquina será, dentro de poucas décadas, uma realidade. Até que ponto tal realidade será de facto benéfica é algo sobre o qual reflectiremos um pouco nos capítulos finais deste trabalho. Não faltam vantagens em tal simbiose, se pensarmos em como podemos escalar rapidamente estádios de evolução; não faltam também desvantagens, entre as que não podemos ainda prever, as que são expectáveis e o próprio uso que cada um faz delas. O Homem será mais poderoso, estará mais próximo da figura de Deus. Terá novas soluções materiais, biológicas, de trabalho, de saúde (viverá mais tempo e idealmente melhor), terá mais do dobro das possibilidades de que agora dispõe. No entanto, como diz a máxima do super-herói, “quanto mais poder, mais responsabilidade”. O uso dessa Humanidade aumentada estará portanto inteiramente dependente da consciência individual, tal como agora. Um problema no entanto põe-se: o aumento desse poder pede, os resultados actuais do comportamento Humano garantem-no, uma melhor Humanidade, muito mais e muito mais bem educada, civilizada, Humanizada. De outro modo, este aumento exponencial de poder e capacidade será uma aceleração exponencial da sua auto-destruição.
Temos, portanto, em síntese, 4 grandes revoluções na História recente do Homem (c. últimos 250 anos) que mudaram radicalmente o Mundo:
1ª Revolução Industrial: Tipo, Química; material, ferro; energia, carvão-vapor; indústria, têxtil, máquina-tecnologia, tear mecânico.
2ª Revolução Industrial: Tipo, Física; material, aço; energia, electricidade; petróleo; indústria, automóvel; máquina-tecnologia, carro; motor de combustão.
3ª Revolução Industrial: Tipo, tecnológica e digital; material: cobre, plástico e silicone; energia: eléctrica; indústria, electrónica, informática, informação; máquina-tecnologia, televisão, computador, Internet, nano-tecnologia.
4ª Revolução Industrial: Tipo, tecnológica e biológica; material: silicone, carbono; energia: eléctrica, energias alternativas (solar, eólica, hidráulica, etc.); indústria: nano-tecnologia, informática, biologia, genética; máquina-tecnologia; inteligência artificial, realidade aumentada incorporada no corpo humano, manipulação de genomas, simbiose Homem-Máquina.
Concluímos assim que a tecnologia, apesar dos seus perigos e da sua dupla face de Jano, contribuiu substancialmente para a melhoria (e aumento) do nível e da esperança média de vida (na saúde, na educação, nas infra-estruturas, na informação, etc). Evoluímos tecnologicamente mais em c. de 250 anos do que em todo o conjunto da História da Humanidade: Telégrafo, telefone, telefonia, televisão (todos os teles da comunicação à distância), computador, Internet, máquina de café, máquina de lavar roupa, máquina de lavar loiça, cinema, varinha mágica, fogão, frigorífico, automóvel, avião, barco a motor, combóio (a vapor, eléctrico, TGV), foguetão… a lista continuaria por muitas páginas. Todas estas descobertas e invenções nos fizeram dar um salto evolutivo cuja dimensão não sabemos ainda medir, por falta de distância.
É uma viagem curta e alucinante, que nos levou figurativa e literalmente mais longe do que já alguma vez fomos. Vimos como viemos ter aqui; espreitámos para quanto nos espera. Mas, em concreto, o que há hoje? O que vai haver amanhã? É isso que vamos saber nos dois próximos capítulos em que escolhemos, olhando para o presente (e sabendo o que deixámos para trás), regressar ao futuro.
(Artigo de: Miguel João Ferreira)
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