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4. Tecno-Cérebros (Anatomias)

  • Foto do escritor: Miguel João Ferreira
    Miguel João Ferreira
  • 27 de nov. de 2017
  • 9 min de leitura

O cérebro de um Homem e o de um Computador, que terão em comum? De que são feitos? Será assim tão grande a diferença entre eles? E que diferenças são essas? Quais as semelhanças? Será o nosso cérebro um mero “rascunho” para a obra-prima que é o computador?


Neste capítulo poremos frente a frente as duas anatomias. Não por curiosidade mórbida por vísceras e fios descarnados, mas para, através da observação do seu interior, reflectirmos, por meio de uma continuação de perguntas, e obtermos, com elas, uma melhor compreensão (ou uma melhor dúvida) de quem e como somos, e dos instrumentos tecnológicos de que nos rodeamos para a construção das sociedades modernas. Será um melhor do que o outro? Será um mais capaz de pensar do que o outro? Como resolver então o dilema de ser o computador capaz de processar mais e mais depressa do que o Homem, mas continuar a ser criação da mente extraordinária deste pequeno deus que nós somos? E será um mais capaz de sentir do que o outro? Os recentes e ainda embrionários avanços na inteligência artificial parecem querer desmenti-lo com veemência. E a ficção científica há muito que faz por atribuir às suas inteligências artificiais elementos como a auto-consciência, um sentido moral ou emoções (ver por ex. A.I. de Spielberg, 2001; ou Her de Spike Jonze, 2013) que gostamos de ter por exclusivamente Humanos.


Diz-se que usamos apenas 10% do cérebro humano e, como o prolongamento da vida, espera-se a cada geração de cientistas que se descubra um modo de usar um pouco mais. Será o computador, cada vez mais evoluído, um caminho de esperança para esse fim? Como seria o computador se tivéssemos mais percentagem de cérebro? (Cf. Lucy, 2014, Luc Besson) Seríamos nós como um computador? Seria o computador que se tornaria Homem ou o Homem que se tornaria máquina? Será a limitação intelectual um atributo essencial da Humanidade para que se mantenha dentro do quadro ético e psíquico que, contra nós mesmos, tanto apreciamos?


A presença crescente da máquina no nosso dia-a-dia é uma evidência antiga, desde as tarefas mais simples (como o manobrar de uma roldana, bater ovos com uma batedeira eléctrica, lavar a loiça ou a roupa automaticamente ou preparar um almoço num robot de cozinha; aos trabalhos mais pesados construção civil) ou mais complexos (cálculos do acelerador de partículas do CERN), por meio de processos mecânicos de destreza e força ou de processos digitais de processamento e armazenamento da informação.


Nada é fruto do acaso, isso é certo. A máquina não teve origem numa inspiração, num momento iluminado de lazer, mas numa necessidade. Como qualquer invenção, o mecanismo que alcançou gradualmente novos graus de abstração e desmaterialização, do simples movimento repetido de um braço robotizado a um cálculo complexo de variáveis que o cérebro humano não consegue processar naturalmente, ocupou um espaço fundamental nas nossas vidas, oferecendo-nos maior conforto, segurança, celeridade de acesso à informação, ao mesmo tempo que parece sussurrar pelos cantos que o Homem não é insubstituível. A maior criação Humana é assim, simultaneamente, a sua maior ameaça e o seu maior receio — o cinema oferece disto mais um exemplo, com a saga Terminator (principalmente os dois primeiros filmes da série, realizados por James Cameron, 1984; 1991).


E no entanto, e a grande ironia está aí, os componentes mecânicos das máquinas, ou a sua estrutura e capacidade de movimento, imitam, no caso das analógicas, o esqueleto e a articulação Humana; e a constituição das máquinas digitais imita o seu cérebro. Como acontece com os medos, o maior que temos, fomos nós que o criámos. Podem ser, freudianamente, uma projecção psicológica como, numa perspectiva meramente social, uma consequência natural, na lógica do efeito borboleta, consequência de algo que criámos: quando uma borboleta bate as asas na China, dá-se um terramoto na outra parte do Mundo. Essa curta fábula da sabedoria oriental simboliza a responsabilidade maior do mais pequeno acto de que somos agentes. E a lição que nos dá, contra qualquer receio, é que, qualquer tecnologia, como qualquer ferramenta, do alicate à catana, não é boa ou má em si própria, mas em função do que fazemos com ela. Deste modo, quando o Homem receia os computadores ou as máquinas é, à luz do Homo Homini Lupus (o Homem é o lobo do Homem), a sí mesmo que está a temer.


O cérebro humano ainda é um mistério. Com o reduzido número teórico de 10%, representativo do uso que dele faremos, o empreendedorismo Humano alcançou já feitos que uma vez após outra foram considerados por gerações anteriores e contemporâneas verdadeiramente impensáveis. Mas o computador retém o que nós esquecemos, calcula e processa o que nós não conseguimos processar ou calcular sem o auxílio de outros instrumentos.


Em 1997, o Deep Blue da IBM venceu o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov numa partida em seis jogos (3 dos quais resultaram em empate). Esse momento marcou o ponto de viragem da percepção que temos das máquinas. Pela primeira vez começou a ver-se o computador como uma máquina pensante, capaz de superar a inteligência Humana. Como é habitual nestes casos, o evidente sinal de progresso não deixou também de ser sentido como uma ameaça. O computador pensa; o computador calcula de modo superior; o computador parece capaz de, conhecendo um conjunto de regras, instruções, algoritmos, delinear estratégias, estabelecer juízos e vencer o maior mestre de xadrez da modernidade; o computador não se cansa nem tem quedas de produtividade… Será que não? Mas o computador que venceu Kasparov, não pensou, processou; o computador venceu Kasparov porque foi capaz de calcular um infinito número de possibilidades (a chamada abordagem brute force), podendo assim escolher matematicamente, por via dos algoritmos por que foi programado, a cada jogada, a melhor jogada possível; logo não se trata de desenvolver uma estratégia mas de resolver um problema matemático de probabilidades; e o computador também se “cansa”, como nós nos cansamos: também ele é composto por elementos materiais, sujeitos à ferrugem, ao desgaste, ao sobre-aquecimento, à degradação, à falha. O computador também apanha vírus que o minam por dentro e o danificam e para os quais poderá não haver um antídoto. O computador é mais Humano do que nós o supomos, porque, ainda que noutro nível, tem como nós limitações, em igual ou maior número. Pelo menos para já, a relação entre Homem e Máquina é de inter-dependência: a Máquina deve literalmente a sua existência ao Homem; e a sociedade por que o Homem se rege e da qual depende a sua sobrevivência está cada vez mais intimamente ligada ao desenvolvimento e futuro da Máquina. A simbiose já está entre nós e, não só não é recente, como adquire, a cada dia, mais força.


O Deep Blue tinha uma capacidade de 3 Milhões de Instruções Por Segundo (MIPS), uma medida de desempenho de processadores; tratava-se de um Pentium de 700 MHz (unidade de medida padronizada pelo Sistema Internacional de Unidades, que expressa a frequência de um evento periódico (oscilações ou rotações por segundo). Eis porém a contradição: esta CPU, hoje claramente ultrapassada, de 3 milhões de MIPS a 700 MHz, bateu o melhor jogador de xadrez da era moderna. E, no entanto, e eis a surpresa, seriam necessárias 1000 unidades dessa CPU para se aproximar dos c. 100 MIPS do cérebro humano. Como explicar que, sendo o nosso cérebro tão superior em capacidade às potencialidades da CPU da máquina que bateu o campeão do mundo do jogo de estratégia mais completo da História esteja tão aquém da capacidade do Homem comum? Como explicar, igualmente, que, face a essas estatísticas, a Sra. da Mercearia não dê cheque-pastor ao Deep Blue; não calcule equações complexas de álgebra de memória; não decore uma enciclopédia ou uma lista telefónica ou baralhos de cartas como o autista Raymond Babbage (Dustin Hoffman em Rain Man, 1988, Barry Levinson)?


Mesmo considerando uma CPU mais actual, como o Intel Core i7 Extreme Edition 3960X, que possui 177.730 MIPS e um clock (microchip que regula o tempo e a velocidade de todas as funções do computador) de 3.33 GHz, continuariam a ser necessárias 546 CPUs de igual capacidade para alcançar a velocidade do cérebro humano. E no entanto, não conseguimos ter nem 50% da performance “cerebral” deste computador que não tem nem 50% da nossa competência. Porquê?


Também por isto parece reforçar-se a ideia de uma ligação intrínseca ou muito mais estreita do que suporíamos entre o Homem e a Máquina, num estranho cruzamento de postulados ao mesmo tempo contraditórios e complementares: quanto mais se conhece a composição da Máquina, mais se compreende o cérebro do Homem; e quanto mais se compreende o cérebro do Homem, mais se abarca o universo digital e abstracto da Máquina computacional. O grau de complexidade do nosso cérebro, e isto é uma evidência que não requer, à partida, qualquer demonstração suplementar, é muito superior ao do computador, que porém nos supera.


O nosso cérebro pode guardar até 10 TB de informação. Mas a memória não volátil do computador, salvo algum erro do sistema ou falha técnica, conserva toda a informação que nele armazenemos (de acordo com a sua capacidade de disco); e a memória não volátil do Homem é volátil de mais, isto é, nós esquecemos. Por outro lado, os nossos neurónios interligam-se, resolvendo assim “problemas de espaço no disco”. Que sucederia então, poderemos pensar, se, colhendo esta inspiração da nossa anatomia, encontrássemos modo de interligar os componentes de um disco, de uma SSD, por exemplo, de modo a optimizar o espaço e, assim, a armazenar ainda mais informação? De algum modo já o fizemos com os circuitos, os transístores cada vez mais microscópicos e os micro-processadores.


3 milhões de horas de vídeo; essa é a capacidade da nossa memória. O equivalente a anos consecutivos de televisão ligada, sem intervalos, talvez, num cenário assustadoramente distópico, como a cura de Alex (Clockwork Orange, 1971, Stanley Kubrick)… Mas lembramo-nos mesmo de 3 milhões de horas de vídeo? Que outras horas, de outras experiências, boas e más, ocupam esse espaço?


Será que um computador acumula experiências? Ou apenas passa por processos de erro, simples matemática, seguidos de capacidade de leitura dos resultados em valores verdadeiros e falsos, para depois corrigir o seu percurso falhado na procura de uma possibilidade não antes tentada no seu empolgante jogo de estatísticas?


225 milhões de biliões de interações entre células, neuro-transmissores, neuro-moduladores… Afinal o nosso cérebro também processa; também precisa de barramentos (PCIs) para transmitir informação da Motherboard para as restantes partes do corpo. Também tem uma hemisfério dedicado ao processamento e ao cálculo, e outros dedicado a outras operações (Linguagem, Criatividade, etc.) uma CPU (Central Processing Unit), uma ALU (Arithmetic Logic Unit);


O computador actualiza-se. O Homem aprende, vai à escola, à Universidade, tira formações, estuda o seu meio-ambiente. O computador processa e executa; o Homem orienta, fornece os materiais (hardware e software), as regras, os instrumentos e os dados para processamento e execução da máquina; deve calcular previamente a capacidade de computação do calculador automático que o irá superar.


O computador tem uma ou mais placas gráficas; o Homem tem olhos; o computador tem placa de som; o Homem orelhas e ouvidos; o computador tem placa de rede para se ligar a outros dispositivos e à Web, que torna disponível informação armazenada em dispositivos espalhados por todo o mundo; o Homem tem as suas redes sociais, a sua família, o seu núcleo de amigos, as suas comunidades e congregações religiosas, políticas, culturais… Ambos precisam de energia para funcionar: o computador de electricidade; o Homem de matéria orgânica, elementos químicos, da proteína ao oxigénio. O computador tem periféricos que permitem a entrada e a saída de dados e a interacção com o mundo envolvente, com que inicia a sua manipulação da informação digital; o Homem tem pés e mãos com que física e literalmente molda o mundo e interage com ele. O computador progride, entre upgrades de software e remodelações profundas de hardware num mundo em permanente mudança e de desenvolvimento frenético; o Homem continua a transmutar-se geneticamente, ao longo dos séculos, sem que sequer o note. E, graças cirurgia dita “estética”, quer o Homem quer a Máquina podem já também ter em comum partes de anatomia feitas de silicone.


Bem se vê que, analógicas ou digitais, inteligentes ou limitadas, as máquinas estão cá para durar (quem sabe mais do que nós), e participarão mais e mais nas nossas pequenas coisas. É bom? É mau? Não é nenhum; é os dois. Tem a qualidade do seu utilizador. Qual dos dois é melhor? O que é preferível? A pergunta inicial desta capítulo continuará sem resposta. Porque a melhor resposta que poderemos encontrar está na reflexão que façamos sobre ela, na aferição das possibilidades, como o Deep Blue no cálculo dos caminhos para bater Kasparov. Com a diferença de que, neste caso, a vitória de um não implica, pelo contrário, a derrota do outro. Esse é o segredo da vida em conjunto. E, afinal, não é já uma vida em conjunto que levam o Homem e a Máquina?


A Era contemporânea está no fim, dizem; talvez esteja apenas num coming of age, num novo processo de maturação; talvez não haja Eras mas uma mesma Era em evolução contínua, um eterno presente (o Eterno Retorno de Mircea Eliade) que se transfigura na linha inexorável do tempo que se mantém impávida pelos séculos enquanto nós perecemos. Até lá vamos tentando explorar esses 10%, ir além da sua capacidade, para chegar aos 20, aos 30 aos 50% aos 100% (e por aí adiante?), até à solução de todos os mistérios.


O que não é mistério é que estamos já mergulhados na Era Digital (a tal Contemporânea num novo estádio de evolução) e tudo está, foi ou estará robotizado, computacionado, digitalizado, informatizado: é o culminar do Admirável Mundo Novo.


(Artigo de: Miguel João Ferreira)


 
 
 

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