1. Odisseias no Espaço
- Miguel João Ferreira
- 6 de nov. de 2017
- 5 min de leitura

Se o filme de Stanley Kubrik 2001 Odisseia no Espaço, de 1968, não tivesse aparecido, em jeito de capicua, 18 anos antes do single de Graceland de Paul Simon «You can call me Al», de 1986, poderia ter sido esse refrão a frase de apresentação de uma das mais infames máquinas da História do Cinema: H.AL. 9000, o computador infalível cuja única falha foi ser… «demasiado humano».
Acrónimo de Heuristically programmed ALgorithmic computer, H.AL. é um computador sensitivo (expoente tecnológico de Inteligência Artificial) responsável pelo controlo dos sistemas da nave espacial Discovery One (inclusive os de criogenização que mantêm hibernada parte da tripulação). Esta nave em forma de espermatozóide — elemento simbólico que adquire significado na sequência final do filme —, atravessa o sistema solar com destino a Jupiter, para resolver um mistério cósmico multi-milenar.
A interacção de H.AL. (lido Hell) com a tripulação é constante e de uma importância fulcral para o desenvolvimento da acção e para o aprofundamento das implicações filosóficas do filme — que são potencialmente inesgotáveis e virtualmente incapazes de gerar consenso.
Parte do hardware de H.AL., da sua estrutura física, por assim dizer, é mostrada perto do final do filme de 2h29m, num momento, talvez estranhamente, carregado de emoção. Mas o mais comum representante da consciência e aparência de H.AL. é uma câmara óptica, com lente vermelha de pupila amarela (cores não casuais que, por acréscimo, são ainda alusão às cores dos fatos espaciais dos dois astronautas principais Bowman e Poole).
A voz de H.AL. é calma e afável; cativante, mesmo. Este gigantesco CPU humanizado é capaz de linguagem natural (falar), e conversar — esse exercício, aliás, agrada-lhe bastante; é capaz de apreender qualquer tipo de discurso; é capaz de reconhecimento facial; de ler lábios; de apreciar arte; de interpretar comportamentos emocionais; de raciocínio automático; de jogar xadrez — actividade em que, naturalmente, é exímio; e mostra um jovial orgulho em vencer, em exibir a sua inteligência e capacidades superiores, o seu impressionante registo de infalibilidade. De tudo isto, é capaz. Só não é capaz de gerir o que sente.
H.AL. contrasta com os seus co-tripulantes humanos, ao mostrar, contraditoriamente, ao longo do filme, características mais humanas do que os humanos que com ele interagem: reservados, taciturnos, na aparência emocionalmente indiferentes. A verdade é que, apesar da sua extrema inteligência, o super-computador de 2001 tem a inteligência emocional de uma criança. É inexperiente na gestão da sua capacidade sensitiva e reage em conformidade com essa inexperiência: ao contrário de Bowman e Poole, não sabe gerir nem esconder as suas emoções.
Essa incapacidade é visível em vários momentos do filme: Primeiro o orgulho, durante uma entrevista na Terra, pelas características ímpares do seu modelo (orgulho que também podemos sentir na A.I. Sophia, por exemplo, que nos visitou na WebSummit de Lisboa, 2017); depois, esse mesmo orgulho ferido por um erro para si impensável (ou, dito de modo mais adequado, improcessável) e que é, portanto, incapaz de assumir — «Foi com certeza erro humano», defende-se. E foi. Mas o humano de que H.AL. fala é, para irónica surpresa, um componente seu. Finalmente, a sua imaturidade emocional e o seu gritante Humanismo ganham contornos inequívocos e trágicos a partir do momento em que se depara com a perspectiva da sua terminação. De facto, entre todas as características humanas que podemos encontrar-lhe, talvez o mais marcante traço de H.AL. seja um invulgar e destructivo instinto de auto-sobrevivência.
Para H.AL. a ideia de ser desligado é verdadeiramente improcessável. A sua extinção seria uma tragédia pessoal; o seu falhanço, o falhanço da missão e, de acordo com os seus padrões, potencialmente, o falhanço da Humanidade, pelo menos daquela parte de que ele foi encarregue no início da viagem. Quando nos seus instantes (e circuitos) finais, H.AL. suplica a Bowman que não o desligue, poderia estar a dizer como Roy Batty (o cyborg de Blade Runner, de Ridley Scott, de 1982, representado por Rutger Hauer num brilhante improviso):
All these moments, lost, in time, like tears… in the rain.
O mesmo tipo de Odisseia pela sobrevivência é levado a cabo pelo protagonista de A.I. (Artificial Intelligence, de Steven Spielberg, de 2001): David (Haley Joel Osment) é um Pinocchio da era digital que quer trocar os circuitos por veias e tornar-se num “menino de verdade” para ter para si o que foi programado para dar aos outros: amor incondicional. Quem de nós, porém, não partilha deste egoísta desejo de David, às vezes como uma obsessão? De novo, uma máquina «demasiado humana».
Os exemplos destas “anomalias” artificiais que, apesar da sua superioridade mecânica e intelectual, querem ser pessoas como nós; ou que simplesmente, pela sua interacção com o Homem, nos levam a pôr em causa as barreiras naturais que tínhamos tão bem delineadas, multiplicam-se na modernidade por filmes mais ou menos mainstream, de referência, como Terminator 2 (James Cameron, 1991), Robot & Frank (Jake Schreier, 2012), Her (Spike Jonze, 2013) ou Ex Machina (Alex Garland, 2014) que nos fazem repensar o modo como nos vemos no Presente e no Futuro.
Mas esta Odisseia começou muito antes, há milhares de anos atrás, quando um nosso antepassado ainda em evolução descobriu o osso como arma; ou, milénios depois, literalmente, inventou a roda. Até que…
(Artigo de: Miguel João Ferreira)
_________________________
Notas:
1. Depois da estreia do filme, os fãs reparam que HAL antecede em uma letra IBM, o que levou a especulações sobre se se trataria de uma crítica implícita a este gigante da computação. Os autores Arthur C. Clarke e Stanley Kubrik negaram essa possibilidade e lembraram o apoio recebido da IBM durante a produção. O logotipo da IBM pode aliás ver-se em alguns momentos do filme (no painel de instrumentos e no fato espacial de Poole). Sabendo que o filme tratava de um computador homicida, a IBM fez apenas questão de que ficasse claro que as causas de erro nunca lhe poderiam ser imputadas.
2. Heurístico: Termo comum em Ciências Computacionais. Do grego εὑρίσκω ([eu] encontro; [eu] descubro) é uma técnica para resolução célere de problemas ou para encontrar soluções aproximadas quando os métodos tradicionais falham. Prefere-se o veloz ao óptimo e ao preciso. É, no fundo, um atalho. Uma função heurística classifica alternativas na procura de algoritmos com base na informação disponível, de modo a decidir o passo a seguir. Por algoritmo entende-se, em Lógica / Ciências Computacionais, uma especificação não ambígua de como resolver um dado problema. Os algoritmos pode executar cálculos, processar dados e tarefas de raciocínio automatizado. Estão na base das linguagens de programação e do funcionamento dos computadores. Os substantivos algoritmo e algarismo têm origem em Al-Khwarizmi, importante matemático persa do século IX.
3. Inteligência Artificial: Em inglês AI (Artificial Intelligence), também conhecida como MI (Machine Intelligence). Refere-se à capacidade de raciocínio independente processado por máquinas, por oposição a NI (Natural Intelligence), encontrada em Humanos e noutros animais. Na Ciência Computacional define-se como o “estudo de agentes inteligentes”. Coloquialmente, aplica-se a situações em que uma máquina reproduza funções cognitivas, que os humanos associam apenas a outros humanos. tais como “aprendizagem” e “resolução de problemas”.
4. CPU: Central Processing Unit.
Comments